
A coisa de Fogo
Já passava das quatro da tarde quando Laurita lembrou do compromisso marcado com Adelaide. A amiga havia feito um bolo de milho com erva-doce no fogão à lenha e aguardava-a para tomar café. Laurita saiu às pressas, mas antes avisou ao marido que iria até a Vila Operária para fazer uma visita. Disse, ainda, que pretendia voltar antes do anoitecer, a tempo de preparar a janta. O filho de Laurita, de pouco mais de seis anos, pediu a mãe que retornasse mesmo antes do anoitecer. E advertiu:
- Não espere a noite chegar se não quiser levar susto com as cobras de luz.
- Que cobras, menino? Não fale bobagens.
Adelaide já a esperava na varanda de casa acompanhada da vizinha Alice, que sentiu o cheiro do bolo de milho e veio
com biscoitinhos de polvilho compartilhar do café e das conversas. Alice era nova na Vila Operária e não conhecia
muita gente na cidade. Seu marido veio trabalhar na Companhia Docas de Imbituba e conseguiu estabelecer-se numa das casinhas geminadas da Vila. Laurita chegou esbaforida e pediu desculpas pelo atraso.
- Não bastasse eu perder a hora, meu filho ainda me assustou com uma história de cobras de luz ao anoitecer. Vê se pode!
Alice ouviu, mas não comentou.
Entraram e foram direto para a cozinha bater papo e, entre uma xícara de café e outra, Alice contou que veio do Rio de Janeiro. Lá trabalhara na casa de uma família abastada e culta, cujos filhos estudavam na Europa e só apareciam para visitar a família a cada dois ou três anos. Alice disse ser muito bem tratada pelos donos da casa, que inclusive a ensinaram a ler e a escrever. A biblioteca da casa era onde ela passava as horas de folga e lia os livros selecionados pelo patrão para o seu adiantamento. As vezes, era ele quem lia em voz alta as histórias que julgava interessantes. Alice tomou gosto pela coisa e sugeriu às amigas que se reunissem para uma roda de leitura de vez em quando. O papo prolongou-se e Laurita não se deu conta do adiantado da hora. Quando olhou pela janela, o sol já tocava o Morro do Mirim.
- Deixa eu ir que ainda tenho a janta para preparar.
- Cuidado com as cobras. - disse rindo Adelaide.
Alice abraçou a nova amiga e disse que no próximo encontro traria um livro especial.
- Há um trecho que tenho certeza que vai te interessar.
Assim saiu Laurita, andando rápido para não pegar a escuridão pelo caminho. Passou atrás da praça da Igreja tão ligeiro que nem a viu, estava pensando no cardápio da janta. Decidiu que fritaria peixe-rei e faria um pirão d'água pra acompanhar. Era rápido de preparar e agradaria ao marido e ao filho. Tão logo resolveu o jantar em pensamento, levantou os olhos para ver o quanto ainda teria que percorrer até chegar em casa. Foi quando viu uma língua de fogo azul descrever um semicírculo bem na sua frente. Parou e benzeu-se.
- Nossa Senhora da Conceição, me proteja. O que é isso?
Nova língua de fogo passou rente ao seu braço esquerdo. Laurita disparou até entrar em casa, pálida e trêmula. Marido e filho tentaram acalmar a mulher, que de olhos arregalados só apontava para fora. Em casa, Alice marcava a página do livro que leria para Laurita no próximo encontro. Era um trecho de Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões, do volume III das Cartas Jesuíticas, escrito pelo Padre José de Anchieta em 1560. "Há também outros fantasmas, máxime nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios, e são chamados de 'Baetatá, que quer dizer 'Coisa de Fogo, o que é o mesmo como se dissesse 'O que é todo Fogo'. Não se vê outra coisa senão um facho cintilante correndo para ali; Acomete rapidamente os índios e mata-os, como os 'Curupiras': O que seja isso ainda não se sabe com certeza.”